Para não ultrapassar a limite de espaço - calcanhar-de-aquiles de dez entre dez veículos impressos - , escrevi dois textos sobre o CD Cê, de Caetano Veloso: um mais curto do que o outro. Notei, entretanto, que o mais extenso até estava dentro das limitações estabelecidas - e, obviamente, seria o meu escolhido para enviar para a editoria do IM.
Entretanto, atrasado para o fechamento da edição, cometi o desatino de enviar... o texto mais curto.
Tudo bem. Paciência.
No entanto, por entender que "os filhos são para o mundo", por que eu deveria guardar esse artigo só para mim? Deixo-o, à guisa de curiosidade, aqui no blog.
Vale lembrar que o tema é polêmico, mas o meu gesto não visa revogar uma vírgula sequer daquilo que foi publicado. Muito pelo contrário: por me estender, naturalmente me aprofundo sobre o assunto.
E acreditem: lamento muito pelo ocorrido.
"...nem uma força virá me fazer calar... "
Saudades de Caetano Veloso
Chega a ser... melancólico... constatar a derrocada criativa de um dos mais influentes artistas brasileiros de todos os tempos: Caetano Veloso acaba de editar Cê (Universal), seis anos após Noites Do Norte, o seu último de inéditas. E, pela primeira vez em sua carreira, o compositor baiano apresenta um álbum que inclui apenas músicas de sua autoria - doze ao todo.
Com o auxílio dos jovens (e bons) instrumentistas Ricardo Dias Gomes (baixo), Marcelo Calado (bateria) e Pedro Sá (guitarra), Cê é um disco de arranjos coesos e minimalistas, porém insuficientes para disfarçar a indigência das novas canções de Caetano. Eventualmente, há um sopro de pop rock no ar, como na embaraçosa "Rocks" - uma boa base instrumental que acabou desperdiçada em uma narrativa bobinha, bobinha (sinta só o refrão: "você foi a mó rata comigo..."). Embora jamais tenha dominado a linguagem do rock, Caetano já transitou por essa seara de maneira muito mais convincente - "Eclipse Oculto" é um bom exemplo.
(E, como Caetano não costuma pregar prego sem estopa, fica a pulga atrás da orelha: será que ele fez "Rocks" a sério? Ou estaria Caê tirando um sarro do gênero, parodiando-lhe o primarismo? Tomara que não. Pois, nesse caso, seria como assinar e lavrar em cartório um atestado de parco conhecimento acerca do assunto - mesmo ele tendo comparecido ao festival na Ilha de Wight, etc e tal....).
O álbum - de notável cunho experimental - já começa mal com a pueril "Outro", cuja letra é simplesmente constrangedora: "você nem vai me reconhecer quando eu passar por você/ de cara alegre e cruel/ feliz e mau/ como um pau duro". Lamentável. A pretensa provocação na concretista "Homem" parece algum rascunho inacabado dos Titãs. E o que dizer então do inacreditável orgasmo luso de "Porquê"? Se a intenção era chocar, soou apenas... ridículo. Só faltou, numa alusão a "April In Portugal (Coimbra)", Caetano batizar a canção de... "Alcova em Portugal".
Já o pseudo-samba "Musa Híbrida" apresenta uma harmonia até interessante, em arranjo totalmente estruturado em uma boa guitarra wah-wah. Mas nada que empolgue ninguém.
No refrão de "Odeio", Caetano repete "odeio você/ odeio você", como um mantra do mal, em um exercício de pura revolta anciã - perfeita para um aposentado cantar para uma atendente do posto do INSS.
A confessional "Não Me Arrependo" é o primeiro single escolhido para as rádios - e não por acaso. A interpretação sentida e a simplicidade da letra expõem a semelhança com recentes versões de sucessos populares feitas por Caetano. Sem ser necessariamente brilhante, trata-se do único resquício - ainda que em tons pastéis - do autor de "Itapuã".
Aliás, nos últimos 12 anos, os melhores momentos de Caetano (verdade seja dita: um grande intérprete) deram-se somente através de canções alheias, como "Você Não Me Ensinou a Te Esquecer", do repertório de Fernando Mendes; "Só Vou Gostar De Quem Gosta De Mim", de Rossini Pinto; além da (merecidamente) estourada "Sozinho", de Peninha. E, infelizmente, Cê nos deixa a certeza de que o seu esgotamento como compositor não era apenas uma má impressão.
Na verdade, esse é o ponto chave da questão: o autor que anteriormente, entre arroubos de inteligência e sensibilidade criava versos como "a rima é o antiacidente", hoje rima "ouro de tolo" com "lobo bolo".
Paira uma dúvida: será que não haveria ninguém do convívio de Caetano que pudesse avisá-lo que, paulatinamente (sem trocadilho), a sua reputação está sendo empurrada ribanceira abaixo? Que, para lançar um trabalho tão ineficaz como esse, seria mais produtivo editar, quem sabe?, o seu acalentado disco de canções românticas? E que, além do desrespeito para com a sua própria trajetória, Cê chega a ser uma afronta... ao seu público?
A pirotecnia habitual, pelo menos, ele já assegurou - ao classificar (numa recente entrevista concedida para a televisão) um colega de classe como... besta.
E ainda é bem capaz de ele ainda dizer que quem não gostou de Cê é idiota.
Resta, portanto, um sentimento de... saudade. Saudade do artista que, outrora, concebeu álbuns marcantes como Cinema Transcendental e Circuladô. Artista esse que, devo dizer...
...parece não mais existir.
E que ninguém pense que isso é dito com algum prazer ou alegria.
Em tempo: há pouco mais de um mês atrás, um jornal carioca tentou, timidamente, reacender a polêmica dos anos 60 do "disco do Caetano Veloso versus disco do Chico Buarque" - visto que este último também editou CD novo, Carioca, esse ano. Bem, se a questão é mesmo essa... dessa vez, deu Chico na cabeça.
Ouça aqui um trecho de "Por Quê?".