sexta-feira, junho 22, 2007

Passado sempre presente

Em seu novo disco, Memory Almost Full, Paul McCartney fala de suas lembranças. E também da idéia de fim.


Desde o lançamento de seu último álbum de inéditas, o belo e introspectivo Chaos And Creation In The Backyard (2005), Sir Paul McCartney não viveu momentos exatamente... tranqüilos. O ex-Beatle, depois de décadas na EMI, mudou de gravadora e viu o seu divórcio virar manchetes no mundo inteiro.

Apesar das intempéries, Memory Almost Full, ironicamente, soa mais... alegre do que o seu trabalho anterior. Este é o 21º disco solo de McCartney - o primeiro pelo selo Hear Music, empreendimento que envolveu a rede de cafeterias Starbucks e a gravadora Concord Music, o que fará com que seja comercializado tanto em lojas convencionais como nas filiais da Starbucks. Também será a primeira vez em que Paul disponibilizará um CD seu em formato digital. Consta que Macca ficou insatisfeito com a divulgação de Chaos And Creation ("a EMI não fez nada pelo álbum nos EUA") - e a ele foi prometido que o mesmo não aconteceria dessa vez.

O título alude à linguagem dos computadores, mas a intenção é mais ampla. Paul refere-se à sua própria "memória", repleta de recordações alegres e tristes de uma longa vida. O próprio músico definiu o disco como "um disco muito pessoal e, em muitos momentos, retrospectivo, desenhado da memória, como lembranças de garoto, de Liverpool e verões passados. (...) Creio que isso acontece porque estou nesse ponto de minha vida, mas então penso nas vezes que compus com John - e muito daquilo também foi feito olhando para trás. É como eu mesmo em 'Penny Lane' e 'Eleanor Rigby' - ainda estou usando os mesmos truques!"

De fato: ouvintes atentos encontrarão referências (intencionais?) a vários momentos da carreira do ex-Beatle nas 13 faixas do álbum - todas inéditas. O maior potencial comercial, no entanto, reside em "Ever Present Past", que já nasce clássica. Trata-se de uma verdadeira pérola pop, daquelas que ele (autor de algumas das mais lindas melodias do mundo) sabe fazer como poucos. E que certamente deverá funcionar muito bem ao vivo.

"Dance Tonight" é uma canção simples, descontraída, marcada por um bandolim que lhe confere ares folclóricos. "See Your Sunshine" soa, desde os vocais da introdução (bem Linda McCartney, aliás), como algo do Macca circa anos 80 - tipo Pipes of Peace. "Only Mama Knows" começa com um suave arranjo de cordas. Subitamente, entram as guitarras, a cozinha rítmica - e, ao iniciar o vocal, o andamento acelera. A partir daí, temos uma faixa vigorosa, estilo "Junior's Farm".

A melódica e tristonha "You Tell Me" é estruturada ao violão de aço e cantada em falsete. "Mr. Bellamy" - um dos melhores arranjos do álbum - passeia entre o sombrio e o delicado. "Gratitude" é uma balada ao piano, com um leve sabor R&B, que mostra McCartney cantando de modo visceral, como em "Maybe I'm Amazed". Na letra, bastante pessoal, ele diz que, apesar de tudo, não quer "trancar o coração". E emociona:

Eu estava sozinho, vivendo com uma lembrança.
Mas minhas noites frias e solitárias terminaram
quando você me protegeu.

Amado por você, eu era amado por você

Quero lhe mostrar minha gratidão.

O espectro dos Beatles se faz presente, em especial, na suíte que engloba quatro músicas da segunda metade do álbum, numa inequívoca referência a Abbey Road: "Vintage Clothes" (curiosamente, uma visão crítica da nostalgia), prima de "If I Needed Someone", de George Harrison; os bons solfejos da discursiva "That Was Me" (que lembra bastante "Spinning On An Axis", de Driving Rain, 2001); "Feet In The Clouds" (impossível não pensar em "Every Night"), na qual vocoder e cordas convivem harmoniosamente; e "House of Wax", uma faixa de matizes épicos - e que apresenta um belo solo de guitarra.

"Nod Your Head", que encerra os trabalhos, é cantada de modo raivoso - ele tem a sorte de a sua voz não ter envelhecido nadinha - o que remete o ouvinte imediatamente a "I'm Down" ou "Helter Skelter".


Álbum mantém o nível do primoroso CD anterior

Já "The End Of The End" merece ser ouvida com uma atenção toda especial. Esse é o momento mais pungente de todo o álbum - e certamente um dos mais intensos de toda a carreira do baixista. Poucas vezes ele permitiu-se ser tão... autobiográfico. Depois da desilusão do fim de seu segundo casamento, Paul, aos 65 anos, talvez já consiga vislumbrar... o fim da estrada. Em versos comoventes, McCartney expõe os seus "últimos desejos". E mostra-se, inclusive, espiritualizado:

No final do final,
é o começo de uma viagem para um lugar muito melhor -
e isso não seria ruim.

Então, um lugar muito melhor teria que ser especial -

não precisa ser triste.

No dia em que eu morrer,
gostaria que piadas fossem contadas

e estórias antigas sendo roladas
como carpetes
nos quais as crianças brincaram. (...)


Produzido por David Kahne (que já trabalhou com Sublimes, Strokes e Bruce Springsteen), Memory... começou a ser concebido, na verdade, em 2003 - tendo sido interrompido para dar lugar a Chaos And Creation. E, a exemplo deste último e dos dois trabalhos anteriores - os bons Flaming Pie (1997) e o já mencionado Driving Rain - em Memory..., Paul gravou sozinho praticamente todos os instrumentos.

[Nota: consta que Nigel Godrich, o produtor do último álbum, teve peito para rejeitar várias canções que McCartney levou para o estúdio durante as gravações, o que acabou gerando atritos entre os dois. Conclusão: algumas dessas faixas do disco novo podem ser as tais em que Paul acreditava - mas que não agradaram a Godrich.]

Memory Almost Full, além de manter o nível de seu primoroso antecessor, é um trabalho absolutamente condizente com a (ímpar) trajetória do músico. E não deixa de ser admirável o fato de Paul, mesmo tendo um nome a zelar, não abrir mão de criar, de olhar para frente - ainda que esse olhar carregue uma certa... nostalgia.

Mas não seria justo culpá-lo por isso: afinal, recordações... ele deve ter de sobra.

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