É necessário observar toda a trajetória artística de Marina Lima para compreender em que contexto se situa o seu novo trabalho de inéditas, Lá Nos Primórdios (gravado de forma independente, apenas com a distribuição a cargo da EMI).
Ao lado de Kid Abelha, Cazuza e cia., a cantora e compositora carioca foi um dos pilotis da geração da MPB surgida nos anos 80 - exatamente: classificar aquela turma como sendo "apenas" rock é uma estupidez reducionista - com sucessos como a clássica "Fullgás", "Acontecimentos", e a linda "Virgem", entre tantos outros.
Na segunda metade dos anos 90, Marina entra em um processo depressivo que, ironicamente, afeta a sua voz. Registros À Meia-Voz, álbum de 1996, expõe o problema (e é importante dizer: com uma boa dose de coragem) já a partir do título: os registros vocais soam como pálidos rascunhos da intérprete de "Não Sei Dançar", lançada apenas seis anos antes.
Em 1998, é editado Pierrot Do Brasil, trabalho aquém da capacidade de Marina. O ao vivo Síssi Na Sua até insinuava uma retomada... que ainda não se confirmava. Seu sucessor, Setembro (2001) também passara em brancas nuvens (ainda que uma das canções, "Notícias", tenha integrado a trilha de uma novela global). E até o seu bom Acústico MTV não teve a resposta usual dos produtos lançados sob a chancela da emissora paulistana.
Entretanto, como o velho clichê da fênix que ressurge das cinzas, Marina Lima verdadeiramente renasceu a partir do show que deu nome ao CD recém-lançado. Primórdios estreou no final do ano passado e, rapidamente, tornou-se sucesso de crítica e público.
E o título desse álbum até pode suscitar algum caráter retrospectivo, sobretudo considerando que a cantora regravou - e, diga-se de passagem, de modo muito convincente - canções anteriores: "Difícil" (Todas, 1985), "Meus Irmãos" (O Chamado, 1994) e "$Cara" (Próxima Parada, 1989). Mas não há o menor resquício de nostalgia nessas três, nem no restante do trabalho: a sonoridade é contemporânea, vigorosa - com belas guitarras (quase sempre pilotadas pelo craque Fernando Vidal) e boas programações eletrônicas. Marina Lima está olhando para frente, em direção ao futuro.
Que ninguém a convide para nenhum revival.
A faixa que abre o CD já dá a senha: "Três" tem um quê de tango - só que reprocessado, no melhor estilo Piazzola From Hell, em que a cantora entrega o mote do trabalho: "não há lugar para lamúrias (...)/ mas por que não nos reinventar?". "Valeu", a segunda música do disco é (acredite)... uma ciranda nordestina (!) - ainda que eletrônica, claro.
Recentemente, Marina declarou: "a música é matemática; inspiração é para os leigos". De fato: apesar de trazer o calor que sempre caracterizou seu trabalho ("eu tenho febre, eu sei..."), tudo aqui soa como se fosse minuciosamente raciocinado - nada por acaso. E ainda há espaço para a ironia: em "Vestidinho Vermelho", versão de Alvin L. para "Beautiful Red Dresses" de Laurie Anderson, e em "Anna Bella", co-escrita com seu irmão Antônio Cícero ("por que as mulheres também não podem ter a sua sauna gay?").
Marina ainda gravou "Dura Na Queda", samba que Chico Buarque compôs para Elza Soares, registrado pelo autor pela primeira vez em Carioca, CD desse ano.
Sei que você deve estar se perguntando: "mas, afinal... e a voz dela"? Bem, a intérprete de agora não é mais aquela de outrora. Pode-se dizer que, com astúcia, a cantora criou para si um outro estilo, mais contido - eventualmente recitado, até - de cantar. E tem se saído bem.
O bom Lá Nos Primórdios é o disco pelo qual o seu público aguardou desde [abrigo] - álbum de canções alheias lançado há exatos onze anos. E receber Marina Lima de volta (parafraseando suas próprias palavras) reinventada, depois de todo esse tempo ... é uma bela notícia.
Ouça um trecho de "Difícil".