Com todo respeito a Ary Barroso e a sua imorredoura “Aquarela do Brasil” — merecidamente considerada o “hino extra-oficial brasileiro” —, provavelmente nenhuma outra canção foi capaz de retratar o País (com o perdão da redundância) de modo tão perfeito do que “Perfeição”, da Legião Urbana.
Em sua letra discursiva, com clara influência do rap — Renato Russo revelou que o groove da faixa foi trazido ao estúdio pelo baterista Marcelo Bonfá em uma fita K7 —, nada escapa aos olhos de águia do líder da banda. A “estupidez do povo”, que, “a cada fevereiro e feriado” comemora “como idiotas”, sem necessariamente ter motivos para tal. A “violência” (“O meu país e sua corja de assassinos covardes / estupradores e ladrões”). A “desunião” da população. O “descaso por educação”. O estado deplorável da saúde pública (“Os mortos por falta de hospitais”). A crueldade da Previdência Social brasileira (“...a nossa gente / que trabalhou honestamente a vida inteira / e agora não tem mais direito a nada”).
Também apontou problemas estruturais (“a água podre”), sociais (“a fome”), ambientais (“queimadas”) e as mazelas inerentes à natureza humana (a “hipocrisia”, a “inveja”, a “indiferença” e as “mentiras”). E, embora tenha lembrado que, apesar de tudo, existe algum patriotismo (“Vamos cantar juntos o Hino Nacional / a lágrima é verdadeira”), não poupou de crítica sequer... a si próprio (“Também podemos celebrar / a estupidez de quem cantou essa canção”).
Outro trecho digno de registro: “Vamos celebrar nossa bandeira”. Entre os “absurdos gloriosos” do passado a que o autor se refere, certamente se encontra a própria Proclamação da República — na verdade, um golpe militar. E vale frisar que, naquele momento, a família Real não apenas foi apeada do poder, como também banida do Brasil para sempre, além de ter todos os seus bens confiscados e, posteriormente, leiloados. Ou seja, naquele momento, o País saiu de um regime absolutista (a Monarquia) para ser governado por dois ditadores (os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto). E, a cada ano, a data é feriado nacional...
“Perfeição” foi lançada em 1993. Portanto, é um desalento constatar que, decorridos 21 anos, seus versos continuam tristemente atuais. E que, para nos tornarmos, de fato, uma nação, ainda há muito, muito a ser realizado.
A evocação aos mitos gregos também não foi gratuita: a menção a Eros e Thanatos (o Amor e a Morte) trata-se de uma menção velada à sua condição de soropositivo. E Perséfone e Hades representam, no caso, a chamada “síndrome de Estocolmo” — o estranho e inexplicável apego por alguém que lhe fez/faz mal.
Já nas duas estrofes finais da canção — que citam a melodia de “O Bêbado e o Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, imortalizada na voz de Elis Regina —, o cantor nos deixa uma mensagem de esperança (“Nosso futuro recomeça”). E exalta a verdade (“Só a verdade liberta / chega de maldade e ilusão”), remetendo-nos imediatamente ao Evangelho de João (8:32): “Conhecereis a verdade. E a verdade vos libertará”.
Parceria dos supracitados Russo e Bonfá com o guitarrista Dado Villa-Lobos, “Perfeição”, eterna obra-prima do rock nacional, integra o álbum O Descobrimento do Brasil [no detalhe, a capa], sexto e antepenúltimo álbum de estúdio da Legião Urbana.
Veja o vídeo de “Perfeição”: