quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Chico e Caetano: o mesmo guri...


Duas canções, separadas por 28 anos, retratam a trajetória de um garoto do morro que acabou caindo na marginalidade. A mais antiga, “O Meu Guri”, de Chico Buarque, foi lançada no álbum Almanaque, de 1981.

A mais recente, “Perdeu”, é a faixa de abertura de Zii e Zie, último CD de estúdio de Caetano Veloso, editado no ano passado [no detalhe, os dois artistas, em foto de Murillo Meirelles, da revista Bravo!].

Observem a semelhança entre ambas – embora a de Caetano seja mais contundente do que a de Chico. Mesmo porque a realidade, hoje em dia, é bem mais violenta...


O Meu Guri
(Chico Buarque)

Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar.
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar.
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar.
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá.
Olha aí
Olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular:
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar.
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro:
Chave, caderneta, terço e patuá,
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador.
Rezo até ele chegar cá no alto –
Essa onda de assaltos tá um horror.
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar.
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais.
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar.
Desde o começo, eu não disse, seu moço?
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.






Perdeu
(Caetano Veloso)

Pariu
Cuspiu
Expeliu
Um deus, um bicho
Um homem

Brotou alguém
Algum ninguém
O quê?
A quem?

Surgiu, vagiu
Sumiu, escapuliu
No som, no sonho
Somem

São cem
São mil
São cem mil
Um milhão
Do mal, do bem
Lá vem um

Olhos vazios
De mata escura
E mar azul
Ai, doi no peito
Aparição assim

Vai na alvorada-manhã
Sai do mamilo marrom
O leite doce e sal

Tchau, mamãe
Valeu.

Cresceu, vingou
Permaneceu, aprendeu
Nas bordas da favela

Mandou, julgou
Condenou, salvou
Executou, soltou
Prendeu

Colheu, esticou
Encolheu, matou
Furou, fodeu
Até ficar sem gosto

Ganhou, reganhou
Bateu, levou
Mamãe, perdeu, perdeu

Céu
Mar e mata
Mortos da luz desse olhar
Antes assim do que viver
Pequeno e bom

Não diz isso não
Diz isso não
A conta é outra
Têm que dar, têm que dar
Foi mal, papai
Anoiteceu

Brilhou, piscou
Bruxuleou
Ardeu, resplandeceu
A nave da cidade

O sol se pôs
Opôs, nasceu
E nada aconteceu

O sol se pôs
Depois nasceu
E nada aconteceu.


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