quinta-feira, janeiro 14, 2016

Em ‘Blackstar’, David Bowie escreve o seu próprio réquiem


CD
(Sony Music)
2016


No dia 08 de janeiro, data em que completou 69 anos, David Bowie editou (que tornou-se imediatamente conhecido como Blackstar), seu 25º álbum de inéditas, já disponível no iTunes e em serviços de streaming como o Deezer e o Spotify — a edição física nacional ainda encontra-se em pré-venda. Na ocasião, tanto o público quanto a imprensa sequer suspeitaram que esse seria o seu último trabalho — o cantor faleceu dois dias depois, após 18 meses combatendo em total sigilo um câncer de fígado. Embora a necrofilia seja, infelizmente, uma realidade, o seu desaparecimento não faz com que o disco se torne “melhor”. Contudo, o desenlace ajuda a elucidar os “enigmas” espalhados por Bowie nas (experimentais) sete faixas que compõem o disco.

A capa apresenta uma estrela negra em um fundo branco, representando graficamente o título do álbum. Nas lápides, todos sabem, estrelas indicam a data de nascimento. Entretanto, se o símbolo é negro, provavelmente indicam uma espécie de... “renascimento” ocorrido post mortem. O nome do artista, aliás, é “escrito” através de partes dessa mesma estrela. Vale observar que, em 49 anos de carreira discográfica, foi a primeira vez em que a imagem de Bowie não aparece na capa de um trabalho seu.

Do ponto de vista sonoro, a ordem, segundo o produtor Tony Visconti, era “evitar o rock”. De fato, músicos de jazz foram arregimentados para as gravações — o quarteto de Donny McCaslin — e, evidentemente, elementos jazzísticos permeiam em sua totalidade. Todavia, é um equívoco classificá-lo como “um álbum de jazz”. Bowie, todos sabem, sempre passou ao largo de qualquer obviedade — e agora não seria diferente agora. Outro detalhe curioso é a onipresença do saxofone de McCaslin no disco, considerando que o sax foi o primeiro instrumento do Camaleão. “No início, eu não sabia se queria ser um roqueiro ou John Coltrane”, declarou certa vez.

Duas canções já haviam sido lançadas em single: “Sue (Or In a Season of Crime)” e “'Tis a Pity She Is a Whore”, as inéditas da compilação Nothing Has Changed, de 2014. Já “Girl Loves Me”, que emula a batida do hip hop (!), é cantada, em parte, no dialeto ficcional Nadsat, que mistura o russo com o inglês, utilizado no livro Laranja Mecânica. E repete inúmeras vezes uma pergunta, no mínimo, estranha: “Where the fuck did Monday go?” (“Onde foi parar a porra da segunda-feira?”, em uma tradução livre). Bowie faleceu em um domingo…

A emoção transborda nas duas faixas que encerram o álbum. Na suave “Dollar Days”, Bowie brinca com as palavras: “I’m dying to (...) / fool them all again and again” (“Estou louco para (…) enganá-los a todos de novo e de novo”). Contudo, no final, ele canta repetidamente “I'm dying to” que também pode significar... “estou morrendo”. E é impossível não se comover ao ouvir o verso: “Não acredite, nem por um segundo / que estou esquecendo você”. Por sua vez, “I Can't Give Everything Away”, que finaliza o trabalho, apresenta, na introdução, um trecho da instrumental “A New Career In a New Town”, do clássico Low [1977]. A letra trabalha com antíteses (“Vendo mais e sentindo menos / dizendo ‘não’, mas querendo dizer ‘sim’ (…) / Essa é a mensagem que deixei”). E, cantando como nunca, se despede como quem se desculpa, em um refrão tão simples quanto… arrebatador: “Não posso revelar tudo”.

Com , David Bowie escreveu o seu próprio réquiem. Provavelmente a música popular jamais viu um artista, estando ciente de que lhe restava pouco tempo, produzindo com tamanha lucidez e planejando cada etapa de modo tão meticuloso. Bowie não nos deixa dúvidas de que sempre teve controle total sobre a sua obra. Até o fim.



Divulgado em novembro de 2014, o vídeo da faixa-título — de quase dez minutos de duração (!) — é um praticamente um curta-metragem. Nele, Bowie criou uma nova personagem, que batizou que Buttom Eyes (Olhos de Botão), talvez se inspirando na tradição da Grécia Antiga de se colocar moedas nos olhos dos mortos. Apesar dos arabescos, a segunda parte de “Blackstar” adquire, na segunda parte — quase na metade — um tocante (e quase messiânico) acento soul. Tudo leva a crer que se autointitular “uma estrela negra” alude à própria mortalidade. E a imagem da caveira de um astronauta — uma provável referência a outra personagem, Major Tom — só reforça essa ideia





Lançado dois dias antes do álbum, o impactante vídeo de “Lazarus” (o discípulo ressuscitado por Jesus Cristo, de acordo com o Novo Testamento), segunda faixa de trabalho, permanecerá na mente dos fãs de Bowie por muitos e muitos anos. Mais uma vez, Buttom Eyes se faz presente, mas, dessa vez, em um leito hospitalar (!). Após a notícia do desaparecimento do artista, a letra tornou-se clara como água: “Olhe aqui / estou no Céu / tenho cicatrizes que não podem ser vistas (…) / Olha aqui, cara / estou em perigo / não tenho nada a perder”. E, enquanto canta, seu corpo parecer querer levitar, mas é impedido por mãos femininas que “brotam” de baixo da cama — os possíveis laços familiares. Em um outro momento, ele já aparece de pé, sem a venda nos olhos, e tenta escrever algo — uma carta de despedida? Mas se detém. Pensa. E recomeça. Após terminar, um envelhecido Bowie afirma que “será livre” — do calvário da sua enfermidade, presume-se. E se refugia lentamente dentro de um armário — que pode muito bem representar um caixão...

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