Chico (Biscoito Fino)
2011
A música do compositor carioca torna-se cada vez mais minuciosa. Talvez por influência de sua... literatura
Nos últimos anos, Chico Buarque tem alternado sua atuação entre a música e a literatura. Após um disco de inéditas, invariavelmente sai em turnê — que acaba gerando CD/DVD ao vivo —, e recolhe-se para escrever mais um romance — o mais recente foi (o ótimo) Leite Derramado [2009]. Portanto, mantendo a “tradição”, o artista volta à ribalta, cinco anos após o seu último álbum de estúdio, Carioca, com um novo trabalho, intitulado simplesmente... Chico.
Amparado por uma inteligente estratégia de marketing, concentrada no site www.chicobastidores.com.br — que disponibilizava conteúdo exclusivo para aqueles que adquiriam a bolacha ainda em fase de pré-venda —, Chico chega às lojas com boa visibilidade, mesmo em tempos de downloads ilegais. Este é o terceiro título do artista pela gravadora Biscoito Fino.
Faixa que abre os trabalhos — e também a primeira música de trabalho —, a modinha “Querido Diário” chama a atenção pelo sabor algo... interiorano. Entretanto, ao mesmo tempo, remete o ouvinte à cordialidade típica do Rio antigo. A letra é clara: é como se alguém estivesse fazendo anotações do próprio cotidiano em um diário. Mas não deixa de causar certa estranheza com o verso “amar uma mulher sem orifício”, que faz uma crítica velada a uma certa... digamos, “irracionalidade” das religiões — que vem praticamente desde o início da história da Humanidade...
“Rubato” — que significa, em italiano, “roubado” — é, na linguagem musical, o termo utilizado para designar a aceleração ou desaceleração do tempo de execução de uma peça. Ou seja, o intérprete “rouba” um pouco do tempo de algumas notas e o compensa em outras. É também o título da simpática (e espirituosa) marchinha composta em parceria com o baixista Jorge Hélder, cuja letra menciona três musas com nomes que rimam entre si: Aurora, Amora e Teodora. Entretanto, o título não é gratuito. Na letra, o compositor revela seu temor: “Venha, Aurora, ouvir agora / a nossa música / depressa, antes que um outro compositor me roube”. E, em contrapartida, assume: “Venha ouvir, sem mais demora / a nossa música / que estou roubando de outro compositor”.
Moral da história: na arte, ninguém parte do zero.
Com um discreto acento blues, “Essa Pequena” fala claramente do relacionamento entre um homem maduro e uma mulher mais jovem: “Meu tempo é curto / o tempo dela sobra. (...) / Feito avarento, conto os meus minutos / cada segundo que se esvai”. Mas, no final, o eu-lírico se conforma: “Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas / o blues já valeu a pena”.
Parceria com João Bosco, ‘Sinhá’ é a letra mais instigante
Mesmo não sendo um baião legítimo, “Tipo um Baião” traz a influência do gênero no qual Luiz Gonzaga foi rei — por sinal, o Velho Lua é citado no final da canção. Como o título entrega, é... “tipo um baião”. Igualmente gracioso é o dueto de Chico com Thaís Gulin em “Se Eu Soubesse”, já gravada pela cantora curitibana, com a participação do autor, em Ôôôôôôôô, seu segundo álbum, lançado este ano. Já a (bela) “valsa russa” “Nina” ilustra o romance virtual de um brasileiro com uma moça... moscovita: “Nina anseia por me conhecer em breve / me levar para a noite de Moscou. / Sempre que esta valsa toca / fecho os olhos / bebo alguma vodca / e vou...”
Parceria com Ivan Lins — e já gravada por Diogo Nogueira —, “Sou Eu” ressente-se pela participação do veterano baterista Wilson das Neves, totalmente inexpressivo como intérprete. Melhor resultado é obtido em outro samba do álbum, “Barafunda”, cuja letra fala das difusas recordações do autor de “O que Será? (A Flor da Terra)” e cita Cartola, Garrincha, Zizinho, Pelé e... Mandela.
O provável ponto alto de Chico é a delicada “Sem Você nº 2”. Inspirada na pérola de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes — que, além do título, é citada na introdução —, possui versos... capciosos: “Sem você, o tempo é todo meu / posso até ver o futebol (...). / Sem você, é um silêncio tal / que ouço uma nuvem a vagar no céu / ou uma lágrima cair no chão. / Mas não tem nada, não”.
Contudo, a letra mais instigante do disco é justamente a da última faixa. Composta em parceria com João Bosco — e com a participação do próprio no violão e nos vocais —, “Sinhá” é samba de nítidos matizes africanos, que narra a estória do velho escravo que está sendo castigado, sob a acusação ter visto nua a “sinhá” que batiza a canção. “Por que talhar meu corpo? / Eu não olhei Sinhá. / Para que que vosmecê / meus olhos vai furar? / Eu choro em iorubá / mas oro por Jesus. / Para que que vassuncê / me tira a luz?”.
Em dez faixas que totalizam apenas 31 minutos de música, Chico, o disco, dá o seu “recado” de maneira concisa. Atualmente, a produção de Chico, o compositor, é desapegada dos “apelos” da música popular: refrões fáceis, etc. Ao contrário: é minuciosa, concentrada. Para ser apreciada sem pressa. Tal qual um bom livro — por influência, presume-se, de sua recente (e proveitosa) proximidade com a literatura.
Chico está no mesmo nível de trabalhos anteriores do artista, como os (excelentes) Paratodos [1993] e As Cidades [1998]. E possui melhor aproveitamento do que o seu antecessor, o bom Carioca [2006]. Em suma: trata-se de um trabalho de Chico Buarque — com tudo o que isso significa. E não é à toa que ele é chamado de gênio.
Leia também:
Ouça “Querido Diário”...
...e “Sem Você nº 2”: